ONDE ESTÁ A SENHA DA VIDA?

18/10/2010 07:46

UM QUASE DESENCONTRO

Amanhece enquanto caminho no Parque Municipal. É a vez de dar umas voltas ao redor do “Lago do Quiosque”. A garça ainda não está lá no centro, em companhia à estátua da vestal. Está ali, aquele senhor moreno, pele rugosa, desfazendo o pão em migalhas. Joga-as caprichadamente aos peixes. Bonito de se ver. Paro a olhar os peixes fervilhando. Puxo conversa. Que festa, hein, digo eu. Me distraio, diz ele. – Tenho visto o senhor estes dias por aqui. Ele retruca: venho pouco por estas bandas. Olha ao redor, atravessado. Parecia que o senhor estava conversando com os peixes.
Digo eu. – Qual nada; só converso comigo mesmo, Yé. Estranhei. – Mas assim tão cedinho, só pode ser conversa fresca, não? – Que nada, Yé. Converso pra esquecer. – Olha a boca aberta deste peixão pintado, aponto. Seria um prato e tanto, digo eu. De repente, um silêncio. Ele fez com os lábios um sorvedouro. Parecia evadido. Parou de jogar pedacinhos aos peixes. Seus olhos miúdos caem sobre mim. – Cê é polícia? Dentro de mim um fermento de desassossego. – Longe disso. Sou de paz. Ele gosta: Melhor assim, Yé. E voltou a lançar migalhas no lago, agora um pouco mais longe. Eu ia saindo. Sua voz rascante me deteve. – Hei, Yé. Transparecia ansiedade. – Que há, digo. Ele ajunta no repente: – Não há como. É pra esconder a bruteza, Yé.
Matei um. Estou fugido. Venho de longe. Pensei se era loucura, fantasia. Indago. – Faz tempo que roda pela capital?, questiono. Serenado ele afirma que não muito. Demoro pouco em cada lugar, Yé. – Pra esquecer, reafirmo. Vai ver que por cada lugar fugido, uma ruga. Parece mesmo envelhecido antes da idade. – Pra esquecer, pra escapar, sô. Yé. – Quer alguma ajuda, digo. – Me viro só. Ajuda, não. (Ele teme proximidade?) Falo para concluir e seguir meu caminho:
– Continue cuidando dos bichos, assim caprichado, assim na natureza. Amolece a bruteza. Parou e me olhou rijo de novo. – Tá bão. Me deixe, ocê. – Saio ao dizer: Deus o guarde. Ele caminha em minha direção. (Oi, penso eu, te cuida!). Pergunta ele: – Cê é pastor de igreja? Sorri e apontei: ta vendo aquela torre mais adiante? Eu moro lá. Carecendo de ajuda, dá uma esticada até lá. – Vou não. Mas quero uma bênção. Hesitei impor-lhe a mão. Pus minha mão direita sobre seu ombro. Ele estava rígido: Deus o abençoe. Bondade, viu? Virou-se num giro rápido e saiu. Saí também. Eu olhava o céu azul, azul. Fiquei olhando sem decifrar nada. Baixou em mim um misto de respeito, tristeza e dor. Numa manhã tão fresca, primavera a chegar... o que diz a mim este encontro? De repente, tum, tum. Cabeça latejando com a repetição daquele YÉ. Que há aí? Tum... e se fosse i.é. = isto é...?! Pode bem ser que seja o sintoma dos fantasmas de matar e morrer. Como a vida pode ser pervertida! E como a vida é preciosa. Como cada momento pode significar ocasião ímpar de visitar os recantos do “EU”.

ENTENDER O MUNDO

Permanecia um estranhamento em mim. Instigante a realidade humana em seus paradoxos e contradições. Sempre algo certo, sempre algo errado. As cenas interiores se recobriam. As de agora e aquelas de Baltazar Sete Sois e Blimunda Sete Luas, no romance de Saramago. Bem dizia Nietzsche: entender o mundo em sua profundidade significa entender a contradição. Aquele homem à beira do lago, dando de comer aos peixes e espantando a solidão. Seu medo o tornava vigia atento, distante de proximidades humanas. De alguma maneira, fugia de alguma sombra.
Por onde andará aquele senhor e sua sombra? Nuca mais o vi. E chega uma outra recordação. Um jovem homem, de tez morena, feliz e cansado, que se sentou à beira de um poço. E lá vem a Samaritana buscar água. E o estranhamento dela se faz revelação de si face ao estrangeiro misterioso que ali se achava, acolhedor e questionante. Encontram-se o desejo e a liberdade de água viva. Então, ela cria um sagrado NÃO ao passado de equívocos. Livre para amar, enfim. Reconstrói um lugar de moradia nova para a vida. Quebra-se a ciranda de um viver rodando por si mesmo, sem fim. E por onde andará aquele outro senhor, perdido e confuso? Terá deixado casa e família em vão, a rodar?

O GOSTO DAS APROXIMAÇÕES

Quem se nutre de remorsos morde a si mesmo. Coisa certa é essa: não dá mesmo para fugir de si sempre. Só enlouquece quem se vê sem saída. Todo remorso mata, afinal. A gente não anda pela vida sempre mais adiante, tomando distância do real. Há horas de subir, tomando outra estrada. Muda-se de patamar, de altura. Rever a planície do alto da montanha para que, quando descer, se consiga demonstrar que não se teme mais a proximidade, não se teme os outros. Reaprende-se o gosto das aproximações, trilhas para se encontrar um novo modo de dar a si mesmo uma morada. O remorso e o escondimento da verdade própria tornam a pessoa fugitiva ou assustada. A faz distante e medrosa. Feliz de quem ouve uma voz que o chama: –
Quando você chegará lá? Pergunta alguém que ama, e aponta a montanha. É indispensável entrar no jardim invisível de si mesmo. Se for para humilhar-se não será elevado. É para abrir-se à compreensão e deixar o amor fl uir em todas as relações. Parafraseando o poeta: eu tenho que ser a única pessoa no mundo com quem me sinto verdadeiramente em casa. Só assim posso compartilhar a vida, livre. Sem apegos e buscas de utilidades no outro.
Amando, estamos no coração de Deus.

QUE SEJA PRIMAVERA

Naquela manhã, quando retornei a casa, me deliciava com os paralelismos: superfície e profundidade; do claro ao obscuro; a sombra e a luz; culpa e graça.
Ao encontro de uma palavra verdadeira, provinda das correntes vitais dos abismos de nossa condição humana, eis um trajeto a não se perder. Dimensões negativas têm em nós seu lugar, e na medida em que se tornam húmus deixam brotar a alegria do reencontro com a verdade do ser com. Leitor (a), quando é mesmo que você chegará lá? Mostre aos demais que você é capaz de diminuir as distâncias. Eu quis apenas lhe dizer que há uma montanha a subir. Há cumes a serem alcançados. Jamais interesse-se por triunfar sob falsas aparências. Caminhe, suba. Descubra o que de melhor Deus colocou em você para o bem dos outros.
Saboreie este pedaço de poema:
– E sei que a primavera está chegando, meus regatos voltarão a fluir e a pequena vida que dorme em mim brotará na superfície ao primeiro chamado.(Gilbran)

Pe. Dalton Barros de Almeida, C.Ss.R.
Belo Horizonte, MG

AKIAKOLÁ - Informativo da Província de MG, RJ e ES - Ano 28 - Nº 08 - Outubro de 2010