ESPIRITUALIDADE

28/11/2011 08:39

MARCEL VAN, UMA INFÂNCIA QUE INCOMODA.

 
Canta Casemiro de Abreu: - Oh que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida... A infância pode ser a música de nossa alma. Pode, e nem sempre é. Na infância o milagre da vida é vivido no jogo alegre das relações e das escobertas, na segurança das figuras paterno-materna por perto. Rever, então, a própria infância é uma forma de reverência pela vida. Um agradecimento. Não é para todos esta saudade feliz.
 
Guimarães Rosa escreveu: - Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas tempo com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando prazeres. Marcel Van teve tudo para desgostar de sua infância. Adultos o pisotearam, cercearam seu universo interior deslumbrado, feriram sua alma. Uma infância siti ada por adultos mais parecidos com os monstros das estórias infantis. No Vietnã os monstros são dragões... Foram perversos pervertedores. No entanto, no pântano das aflições brotou a flor mais bela de sua alma.
 
Hoje muito se insiste na criança que subsiste em nós. Acordar o menino, o divino em nós. Evoca-se a infância para evocar o milagre da vida. O nascer e os nascimentos vida adiante, seguidamente. O renascer. Coisa certa, entretanto: após cada aniversário, a vida se torna para nós mais apreciada, porque envelhecemos. Ou não? A coisa boa em Marcel, como salvando o que há de melhor: a construção de ser fi lho. Sua realidade de criança-filho.
Pensando nisso, relendo sua estrada, este jovem vietnamita redentorista me surpreende. Uma surpresa de Deus para a nossa Congregação.
 
Van, infância das mais tumultuadas e conflitivas, cheia de infelicitações e abandonos, descobre com a Virgem Mãe Maria a trilha do aconchego para resistir e crescer: a entrada no reino da santificação. Esta infância, tesouro a se cuidar. Saboreando o amor materno da mãe de Jesus, procura ser como Jesus. Entra na familiaridade com o Menino-Jesus, com Jesus-Menino.
 
Escreve na sua autobiografia: - Aprendi a amar Jesus-menino ao mesmo tempo que a Santa Virgem, pois cada vez que minha mãe contava para mim uma história sobre a Sagrada Família, ela acrescentava muitas outras sobre Jesus Menino (...). Daí, a imagem de Jesus-Menino se gravou no meu espírito, e meu único desejo era o de ter comigo uma imagem dele nos meus braços.
Na busca sofrida de “ser de Jesus”, “ser como Jesus”, “ser para Jesus”, Marcel Van, a criança-adolescente ao conhecer Teresa de Jesus, a de Lisieux, em “História de uma alma”, vibra com a percepção de que a infância que vivia possuía algo de muito valioso. Em sua autobiografi a ele diz: - Desejo que tu me dês esta santa para me guiar na sua “pequena via”. Oh então, que doçura para mim. É que eu sinto que minha vida pode liberar os senti mentos da infância que Deus imprimiu em minha alma, como um dom inato. E nos Colóquios.
 
Van escreve: Meu pequeno, quanto mais teu amor por mim for pequeno a exemplo das criancinhas, contenta-te em me olhar e eu penetrarei no fundo de teu coração melhor que a mamãe penetra no coração de seu fi lhinho. Esta familiaridade com Jesus se desdobra também com o Pai do céu, “Pai que é Amor”. Chega até o “bom Deus”. Van afi rma: - Entrarei na casa de Deus (igreja ou capela), comportando-me com familiaridade como se esti vesse em minha própria casa, como se eu esti vesse sentando-me nos joelhos de minha mãe ou me lançasse nos braços de meu pai.
 
Para Van, (e para você?), persiste a consciência de que a infância é um tesouro a se guardar, a se culti var. Nos seus quinze anos, ao escrever pela primeira vez a um Redentorista (o superior da casa de Hanói), e não os conhecia, justi fi ca seu pedido de ingresso na congregação assim: - Penso nos perigos do mundo, mas sobretudo, sinto em mim o desejo de entrar em religião para tornar-me um fi lho da Santa Virgem a tí tulo muito especial. Ao finalmente ser aceito na Comunidade, encontrará na pessoa do padre Boucher, o escutador, o orientador espiritual de fi na sintonia com as delicadezas de Deus nos caminhos das pessoas simples, porém ébrias do Espírito. Van se faz aprendiz. Mas se entrega ao combate espiritual, que vale uma vida. Em Maria, a mãe, Van busca proteção, consolo, encorajamento. Já redentorista, escreve numa carta a seus pais: - Oh, pensando na Santa Virgem, comovo-me até as lágrimas, pois vejo que durante minha vida, ela me seguia com seu olhar, para me proteger e me consolar. Sem ela, durante os anos de minha infância vividos longe da família, eu teria caído no desespero. Sim, queridos pais, durante aqueles anos de grandes sofrimentos, eu só consegui derramar o coração cheio no coração de Maria.
 
MAS, a história da santificação de Van, redentorista, torna-o desejoso de um ambiente espiritual intenso. Faz-se aprendiz e tem na pessoa do mestre de Noviços, Padre Boucher, um escutador afinado com o espiritual no psíquico de um adolescente buscador de Deus.
Entende fundamente (e doídamente) a necessidade de purificar o seu interior, arquivo de infantilismos, de dificuldades para evoluir na adultez. De sua sofrida história de criança-adolescente persiste nele uma hipersensibilidade e um orgulho. Imperfeições de criança vivendo resiliência, mas senti ndo o peso dos abandonos, as feridas de desrespeito.
 
Passava por medos incrivelmente ridículos. Ele mesmo rí, por vezes, de desajustes tais. – Deus me introduziu numa vida nova, numa vida bem diferente daquela que vivia no mundo. Ele me fez conhecer o caminho da perfeição e as condições para alcançar a santifi cação. Van, de pequena estatura e com sua simplicidade de aldeão e criança, mesclando infanti lismos e disponibilidade, era para os confrades canadenses, objeto de chacotas, brincadeiras. Até mesmo deburlas. Viveu recebendo uma e outra anti pati a declarada. Padeceu humilhações. Era, todavia, simpático para a maioria, vidas em bom-humor. Fraternas vidas. Há páginas e páginas de Van narrando esses entreveros domésticos. – Devo reconhecer, entretanto, que a maneira com a qual me tratavam , era em parte também por culpa minha, pois guardava ainda modos infantis, e sobretudo eu não estava habituado a trabalhar manualmente. (Autobiografia). Estando no cargo (ofício) de alfaiate, bati nas e consertos para toda a comunidade, anota: - Apesar de toda a amargura de minha alma, eu me esforçava para bem cumprir o encargo da melhor maneira possível. Falando em amarguras, me sinto confuso, e não posso deixar de rir, vendo as coisas insignifi cantes que me faziam sofrer. (...) estas coisas eram para mim um pesado fardo, e sem a graça divina seria para mim impossível suportá-las. Bem sei que as coisas se passavam desta maneira porque minha alma tão pequena e imperfeita se perturbava facilmente, incapaz de conter sua emoção ante o menor obstáculo. Por isso digo com Santa Teresa: Porque eu sou pequeno, só tenho pequenos sacrifícios a oferecer ao bom Deus. (Autobiografia). Van crescerá no amor, amadurecendo. Entre esperança e repetições.
 
Sairá da linguagem de criança, mantendo a simplicidade do coração e a espontaneidade. Neste processo evoluti vo assumirá outra linguagem para falar de suas experiências de fé. Uma linguagem de amor-esponsalício (ah, a mística dos pequenos de Jesus!). Crescerá a ponto de se ver e entender e assumir ser cooperador da redenção abundante. De modo surpreendente,sua vida até o fim aponta para um paradoxo: Van é chamado a oferecer suas contrariedades e padecimentos, até mesmo o desgosto e a tristeza de coração alegre. Em seus colóquios com Jesus (a maioria deles está escrita!), escuta: - Sê, portanto, sempre alegre. Uma só de tuas alegrias basta para me consolar. Aprendeu viver alegremente em meio aos embaraços.
 
Será preciso que a alegria acompanhe teu amor. Como redentorista afirma: - Em pouco tempo após haver abraçado cada dia a cruz sobre minha cama, compreendi o sentido profundo da vida de um religioso redentorista. (...). A partir deste momento, só tenho olhos
para a vida de Jesus Redentor a fim de bem-viver a minha própria vida. (Autobiografia). E foi como é Geraldo nos primórdios da Congregação, o sustento da missão dos padres missionários. Não sendo padre, se viu colocado no número dos “apóstolos do amor de Deus”, esses escolhidos, ocultos no coração de Deus, para serem força vital para os apóstolos em missão. De modo risonho ele diz a seu mestre espiritual, no jeito de criança a brincar: - JESUS-Marcel e MARCEL-Jesus, eis dois nomes que são um só. Marcel Van é a infância recriada como expressão da fofura de Deus, de suas delicadezas com seus pequenos. Uma história vivenciada na confiança - ousadia - simplicidade - missão redentora - martírio.
 
Infância. E a sua infância, leitor? E seu caminho espiritual de fi lho (a), leitor (a)? E seu seguimento de Jesus? Se a infância de Van em quase nada foi doçura e não deixando saudades, sendo afl ições e combates, a braços com pobreza, ter que sair de casa, quase vendido a traficantes de escravidões, se não conseguiu ver seu sonho de ser padre acontecer... SE... se... No entanto, encontrou seu caminho, seu tesouro, sua missão de ser: amar e salvar “almas”. É expressão melhor e surpreendente de sua história a missão de TRANSFORMAR O SOFRIMENTO EM ALEGRIA. Foi um jovem compadecido. Passa-me a vontade escrever um auto do compadecido, fi gurando Van. Van sem cessar se afi rmou “um pequeno redentor”. Seu final de vida é a revelação deste caminho.
 
Em 1954, o Vietnam foi separado em dois. Como ainda é hoje. O norte, comunista. Compadecido de seus concidadãos (ah, como Marcel odiava os franceses colonizadores de seu povo!), dando-se conta do esvaziamento da fé pelo ateísmo militante, entrará neste vazio sócio-político. Irá como um toque de trombeta proclamar o amor redentor. O fez em praça pública, saindo do mercado. Foi preso. Foi julgado. Não aceitou mentir, acusando os padres, confrades canadenses. Era menti ra. Não sabia mentir. Estabeleceram-no em campos seguidos de reeducação. Resisti a. Tudo se deu a partir de 7 de maio de 1955. Nos campos, o consolador. O cuidador. O que não se poupava para dar esperança a todos que o buscavam. E como o procuravam! Há algumas cartas dele ao confrade superior. Narra seu dia a dia de levar esperança, distribuir aspirina, consolar e dar a comunhão (no escondido! Até mesmo num aparente cigarro). E tudo nos intervalos do almoço, no fim de um dia exaustivo de trabalhos forçados. Morre exangue, reti do numa solitária, magérrimo e só. O enterraram, pequeno grupo cristão, entre árvores. Tentaram marcar o lugar com cacos de garrafa. Um lago, certo dia, sepultou o lugar de lembranças malditas, onde a redenção foi abundante. . E por lá ficou a semente...
Dedico esta meditação ao MLR da Província. Reacendendo a Missão. Qual das coisas é a maior? É o Amor. É preciso tomar sangue como parte de nossa vida. Vale que sejamos os redentores. Cantaremos juntos a canção dos redimidos.
 
Pe. Dalton Barros de Almeida, C.Ss.R - Coronel Fabriciano, MG
Akikola - Informativo da Província de MG, RJ e ES  - Ano 29 -  Nº 09 Novembro de 2011