A GRAÇA DA VIDA

25/11/2010 15:08

(Em tudo perceber o “dedo de Deus” e agradecer )

 

No recanto preferido para minhas caminhadas, o Parque Municipal, pertinho de casa, coisas acontecem. Meses atrás ia aquele fotógrafo de meia idade empurrando seu carro-laboratório e puxando uma mini-moto para as crianças nelas fazerem pose e desejarem uma foto. Lá vai ele a passo esticado, forcejando. Lá venho eu, chegando perto. A placa da mini-moto diz: “chico.com”. Aproximo-me.

– Olá, seu Chico. Ele: + Tudo bem com o Sr? – Quase tudo, digo. + Num diga que... – É que ainda não lhe fiz minha sugestão. + Sugestão de que, home. – Estou sugerindo que o Sr. monte a moto e puxe o carro. Fica mais leve. Eu ria. Seu Chico teve uma fulguração. Com o rosto destrancado diz: + Sugestão rejeitada. – Mas por quê? + Ta vendo o trio da Guarda Municipal ali adiante? Eles me multariam. Não tenho habilitação para dirigir moto, ora. E ria. Rimos. Ajudei-o a vencer os 100 metros seguintes até seu ponto de estacionamento, onde espera os fregueses pela manhã.

Estacionado, foi logo dizendo: + Valeu. Obrigado pela brincadeira. Começo o trabalho satisfeito.

Recordo esta cena por conta do agradecimento: obrigado pela brincadeira. A gratidão! Freud repetia que o medo maior na vida é o de permanecer só e isolado. O desamparo de sempre, ao nascer, se repetindo na vida. Contra tal mal-estar há que se contrapor um saudável estar bem através da tendência de aproximar-se, cooperar.

São ações provindas da emoção de amar o semelhante. Emoção de amor pelo outro. E do coração amoroso e sincero é que vem o dar graças, o agradecer.

Curioso mesmo: as pessoas contentes, por exemplo, em seu casamento (e em família) são gente de gratidão. John Gottman, psicólogo especialista em casais e família (Universidade de Washington, EUA), bem à la americana pois dentro da cultura de tudo calcular, criou o seguinte aforismo: - a menos que um casal consiga manter em alta a proporção de emoções positivas em relação às negativas (5 por uma, ou mais), é provável que o casamento termine. E dentre as emoções positivas situa-se a gratidão, emoção positiva elevada. Dar graças. Agradecer. Louvar. Bem dizer. São forças de vida, dinamismos, emponderamento. Afirmação positiva: faz viver, reata com a esperança, conecta com os sonhos bons. A conclusão é inevitável: dar e receber gratidão.  Cultivar a gratidão como estilo de vida. Todo mal agradecido é amargo, ressentido e mal criado. A ingratidão fere e queima como brasa.

LINGUAGEM NOSSA DE CADA DIA

Se prestarmos atenção à nossa linguagem diária perceberemos como influi em nosso modo de pensar e, ao mesmo tempo, como nos revela. A linguagem diária diz quem somos. Falamos sobre coisas/pessoas e acontecimentos. Esse falar demonstra como nos situamos na vida. Então, quais palavras diárias, de uso corrente, que revelam seu gosto de ser agradecido, sua gentileza face a pequenas atenções dadas e recebidas? Como percebe os sinais de convergência nas oportunidades? É hábito de a maioria considerar muita coisa como “sorte”. Boa ou má. Todavia, bem que podemos interpretar estas “coisinhas” graciosas da vida como presentes de Deus Amor. E quantos maus pedaços vividos, passado certo tempo, passam a significar bênçãos! Havia embutidos neles chances inovadoras, a que não se prestou atenção. E nós cristãos dispomos de um nome bonito para estas estações da convergência dadivosa: graça. Ela é mesmo de graça, gratuita.

Confira a filiação das palavras: Graça-grato-gratidão-agradecido.Se cada um de nós reconhece e identifica a graça das horas de cada dia, com a maior naturalidade o coração passa ser gratus (latim), saudável. Agradecido, porque  agraciado. Mantenha, pois, a questão em aberto: - quais palavras diárias, de uso corrente, revelam seu gosto em agradecer e identificar as convergências abençoadas? Agradecer gera saúde.

RUPTURA NECESSÁRIA

A gratidão como força de vida (virtus = virtude!) rompe com os monólogos interiores. Estando a pessoa a falar consigo é como jogar na roda desenhada no chão o peão das reclamações que rodopia ao lado do peão das maledicências. E logo, logo se lança igualmente o peão do ressentimento. É que todos estão encordoados dentro de nós. Assim sendo, para se ter a gratidão como estilo de vida é necessário romper com este encordoamento interno e começar a pautar as reações nesta certeza de fé viva: tudo é graça.

- Demos graça ao Senhor nosso Deus! (Recorda-se quando somos assim convocados?). Rompendo com a roda dos peões entra-se em outra ciranda: a graça e a gratidão andam de mãos dadas

(Karl Barth).

APRENDENDO

A gratidão é mais que um sentimento. É aprendizagem. Quem leva um estilo agradecido nos caminhos do viver goza de mais flexibilidade, torna-se pessoa menos defensiva, aberta às novidades e aos acontecimentos. Se o sentimento de gratidão ocorre com as coisas boas, as atitudes (estilo) de gratidão precedem os acontecimentos, chegam antes, são primeiras. Precedem à bondade recebida e precedem às provações que nos invadem. Assim, construir uma MEMORIA AGRADECIDA, modo afonsiano, nos educa para as superações.

“Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, eterno é seu amor”. Fazer gratidão nos torna mais atentos ao que é bom nas situações, deixando o que é ruim de lado. Daí que em circunstâncias doídas, podemos crescer pela superação. O romancista e batalhador da paz, judeu egresso de Auschwitz (o terrível campo de concentração), Elie Wiesel, escreveu:

- Ninguém é tão capaz de sentir gratidão quanto quem emerge do reino da noite. (...) Até hoje a palavra que sai com mais freqüência da minha boca é obrigado. Esta metáfora “reino da noite” pode nos levar à recordação de muitos momentos sofridos e sufocantes. Quem emerge das noites da alma e pisa outra vez o chão da liberdade se dá conta que nossa liberdade começa com a gratidão. Aqui reatamos com a MEMORIA AGRA DECIDA, este modo do coração sincero e da alma grata se alegrarem com as gentilezas recebidas, com as boas conversas, os encontros criativos, os tempos de compaixão, as bênçãos de cada dia, o apoio... essas coisas que nos chegam na hora necessária. Pura conspiração divina a nosso favor! Pode-se até afirmar que nós somos quando recordamos agradecidos nossa história de vida.

A memória agradecida é narrativa: contamos histórias como esses “causos” de nossa Minas Gerais, entremeados de sutilezas espertas. Este narrar é uma criação de sentindo, resignificando fatos que deixaram a vida como em pedaços.

É costurando com o fio da graça o todo que re-encontramos o eu redimido e uma história como salvação. A vida passa a ser percebida como “seqüencias de redenção”.

As escrituras sagradas nos dão exemplos sem conta, contando-nos sobre transformações de condições e circunstâncias sofridas que alcançam resultados positivos.

É proclamar: o Senhor fez... faz...fará... conosco maravilhas.. Esta virada redentora da vida fragmentada, ganhando unidade, não apaga os padecimentos originais, mas nos faz reconhecer neles as dádivas que continham e que continuam a chegar.

Este recordar é acordar de novo o coração para o já vivido. Nascidos para lembrar, encontramos na recordação o sentido mais profundo dos acontecimentos. Pois a vida não é um amontoado sem sentido.

Consiste, sim, em releitura das experiências mormente aquelas pesadas. O que supõe elaboração interior de reconstrução à luz do Amor libertador. Nós cristãos fazemos memória, deixando-nos tocar pelo amor, lugar de encontro com Deus e conosco próprios, redimindo-nos. Donde: em todas as circunstâncias dar graças. Tenho constatado muitos milagres com pessoas agradecidas. Elas os descobrem! - Fazei isto em memória de mim.

N.B. Confira nas cartas de Paulo a correlação entre graça e gratidão. E Jesus é para nós dádiva do Pai, fonte . Dom inefável.

Mistério redentor.

Pe. Dalton Barros de Almeida, C.Ss.R.

Belo Horizonte, MG